QUANDO A ESCOLA DEIXAR DE SER UMA FÁBRICA DE ALUNOS

Ótima matéria que reflete sobre educação bancária elaborada por CATARINA FERNANDES MARTINS:

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A escola de massas, onde um professor ensina ao mesmo tempo e no mesmo lugar dezenas de alunos, nasceu com a revolução industrial mas chegou ao século XXI. Em dois séculos, mudaram os estudantes, mudou a sociedade e mudou o mercado de trabalho. Quando mudará a escola?
Crianças sentadas em fila, olhando para a frente. Mãos cruzadas em cima da mesa, numa postura inerte. A secretária do professor fica no extremo esquerdo da sala de aula. Não está a ensinar. Os alunos têm uns capacetes de metal, ligados por uns cabos eléctricos a uma máquina onde o professor coloca uns livros. A função desse aparelho, compreende-se pela imagem, é a de extrair a informação dos manuais e introduzi-la directamente nos cérebros dos jovens, através da transmissão da energia eléctrica. Foi assim que os ilustradores franceses Jean Marc Cotê e Villemard imaginaram e retrataram a escola do ano 2000, num postal que era parte de uma série produzida para a Exposição Universal de Paris, em 1900.

A gravura é de 1899 e foi utilizada por João Barroso, especialista em políticas de educação e formação da Universidade de Lisboa, num trabalho que terá sido apresentado em São Paulo, ontem, intitulado A Escola e o Futuro: As Mudanças Começam na Sala de Aula.

A escola do ano 2000 imaginada pelos ilustradores franceses Jean Marc CotÍ e Villemard em 1899
A escola do ano 2000 é imaginada, no final do século XIX, como um prolongamento da escola então existente. Cotê e Villemard não vislumbraram uma sala de aula com um funcionamento completamente diferente por causa da electricidade. Em vez disso, desenharam a aula de 1899 – um local onde os jovens recebem, de forma passiva, o conhecimento que lhes é transmitido pelo professor – e acrescentaram-lhe uma nova tecnologia, que lhes permitiria, simplesmente, ter a mesma informação, embora com a recepção facilitada.

Vítor Teodoro, professor da Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade Nova de Lisboa, tem outra pintura – de uma sala de aula ainda mais antiga – na cabeça. O professor está num púlpito. Lá no alto, consegue ver todos os alunos, que se dispõem à sua frente, sentados por filas. Mas nem todos olham para ele. Uns conversam com os colegas do lado. Uns têm o olhar perdido noutra direcção. Um deles dorme apoiado no braço. Vítor Teodoro está a pensar na iluminura pintada por Laurentius de Voltolina no século XIV, que retrata Henrique da Alemanha a dar uma aula na Universidade de Bolonha, mas que, de acordo com o professor, podia retratar uma sala de aula dos dias de hoje.

A educação que hoje conhecemos tem duas bases, explica o professor da FCT-UNL: a da religião e a do apprenticeship – a aprendizagem por integração numa comunidade, que vem da tradição dos ofícios e dos mestres. Para Vítor Teodoro, durante o século XX, predominou o modelo religioso. A escola adoptou das igrejas o estrado e o púlpito e o professor, à semelhança do padre, começou a transmitir, expositivamente, a informação aos alunos, que a recebem de uma forma passiva. Ensina-se o grupo e não o indivíduo, o que, muitas vezes, leva a que alguns jovens não compreendam o que está a ser ensinado e percam o interesse: “Há 50 anos, as pessoas repetiam as orações em latim e não percebiam o que estavam a dizer. Hoje, acontece o mesmo com os alunos.”

Há muito tempo que a escola se concentra em ensinar aos alunos as competências básicas da matemática, da escrita e da leitura. Agora, estas aprendizagens básicas já não são suficientes. No livro The global achievement gap, Tony Wagner, investigador de Inovação na Educação no Centro de Tecnologia e Empreendedorismo da Universidade de Harvard, descreve o que está a ser ensinado aos jovens nas escolas, por oposição ao que eles deveriam estar a aprender para triunfarem nas suas carreiras, numa economia global.

Wagner defende que a escola deve desenvolver sete “competências de sobrevivência” necessárias para que as crianças possam enfrentar os desafios futuros: pensamento crítico e capacidade de resolução de problemas, colaboração, agilidade e adaptabilidade, iniciativa e empreendedorismo, boa comunicação oral e escrita, capacidade de aceder à informação e analisá-la e, por fim, curiosidade e imaginação.

Uma colecção de salas

Teresa Franco tem 15 anos e a partir de Setembro vai frequentar o 10.º ano no Liceu Rainha Dona Amélia, em Lisboa. Decidir-se por uma área de estudos foi complicado, diz: “Não tenho a certeza de nada porque não tenho experiência.” Teresa fez um intenso trabalho de pesquisa e criou uma lista com os cursos que a interessavam: Psicologia, Serviço Social, Dança, Escultura, Pintura, Design de Ambientes, Design de Comunicação, Design de Moda, Fotografia, Ciências da Educação, Jornalismo… Áreas variadas e muitas delas relacionadas com a criatividade. Fez testes psicotécnicos e falou com profissionais de várias áreas para perceber com qual delas mais se identificava. Acabou por escolher o curso de Artes. Talvez um dia venha a ser designer.

“Tudo se passa nos mesmos lugares, ao mesmo tempo e da mesma maneira. Uma escola é uma colecção de salas de aula e o ensino é uma repetição de actividades pré-formatadas, iguais todos os anos” João Barroso, da Universidade de Lisboa

Quem sabe se por causa das dificuldades que teve em decidir-se por um curso, Teresa defende que a escola deveria promover a interacção com pessoas com experiência nas diferentes áreas profissionais. Defende que aquilo que faz mesmo falta na escola é uma componente mais prática. Sugere, por exemplo, que o horário da tarde fosse ocupado com workshops de fotografia, desporto, artes… Quanto ao ensino das disciplinas, deveriam ser incentivados outros métodos para além do “decorar, decorar, decorar”. É por essa razão que muitos dos seus colegas “odeiam História”: “Deviam encontrar uma forma que nos cativasse. Em vez de nos obrigarem a decorar, podiam contar-nos mesmo uma história – levar-nos a falar com historiadores ou pessoas que tivessem vivido um determinado acontecimento.”

Até aos seis anos, frequentou uma escola inglesa, a English Preparatory School. Como explica a sua mãe, Cristina Rebocho, o ambiente era descontraído e a auto-estima das crianças estimulada: “Ensinavam muito através da brincadeira.” Os momentos de avaliação aconteciam de forma discreta. As crianças pensavam que estavam a fazer uma ficha de exercícios normal, quando, na verdade era um teste, e assim não ficavam tão nervosos. No ensino da língua – neste caso, do inglês – os erros ortográficos das primeiras composições não eram corrigidos. “Para que eles pudessem desenvolver a imaginação e a criatividade”, explica Cristina Rebocho.
Teresa pensa que os anos que passou nesta escola lhe deram “estruturas sólidas”. Também por causa dessa experiência, está convencida de que o ensino deveria ter uma base artística. Alguns colegas dizem-lhe que tinham jeito para as artes quando eram pequenos, mas como não tinham tempo foram-no perdendo. Para Teresa, é uma pena porque, diz, as artes “são muito úteis para que nos consigamos expressar e estar mais à vontade na relação com os outros. E são libertadoras”.

A pedagogia tradicional da escola uniformizada está na base da criação da escola de massas a partir do século XIX e não sofreu alterações radicais desde então. Assenta na homogeneização dos alunos e na subordinação aos princípios da tragédia grega: unidade de espaço, de tempo e de acção – “Tudo se passa nos mesmos lugares, ao mesmo tempo e da mesma maneira. Uma escola é uma colecção de salas de aula e o ensino é uma repetição de actividades pré-formatadas, iguais todos os anos”, de acordo com João Barroso.

Os vídeos Khan

A revista Economist, num artigo da sua edição de 29 de Junho, Education technology, mostrava-se optimista relativamente à possibilidade de a Internet ser, por fim, capaz de fazer aquilo que a escola massificada nunca conseguiu – adequar-se às necessidades individuais de cada aluno. A revista britânica considera que os recursos online – desde os programas que monitorizam o desempenho dos alunos aos vídeos com exercícios – podem estar a transformar profundamente a educação.

Um dos exemplos referidos pela revista foi o da Khan Academy – um site que disponibiliza gratuitamente vídeos com explicações, criado pelo norte-americano Salman Khan. Os vídeos possibilitam a metodologia da “aula invertida” – em vez de assistirem à exposição do professor na sala e realizarem os exercícios em casa, os alunos assistem aos vídeos em casa e realizam os exercícios na sala de aula. Um exemplo, segundo a Economist, de como algumas inovações podem transformar a educação convencional.

Em Abril deste ano, a Fundação Portugal Telecom importou a ideia. Para Teresa Salema, responsável pela Academia Khan em Portugal, o futuro da educação pode passar por aqui.

A iniciativa surgiu devido à percepção de que “os alunos não estão bem preparados para enfrentar a sociedade da informação” e da necessidade de introduzir novos estilos de aprendizagem: “A sala de aula não muda há 300 anos, mas as crianças são diferentes”, afirma à Revista 2.

Até ao início do próximo ano lectivo, a PT espera ter disponíveis 400 vídeos de Matemática. Depois, e até 2014, deverão ser adaptados vídeos de Física, Química e Biologia. As explicações foram traduzidas do inglês e a adaptação aos conteúdos dos programas nacionais foram feitos com a ajuda da Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM). As prioridades situaram-se nas áreas mais científicas, onde os resultados escolares a nível nacional são mais negativos.

Como explica Teresa Salema, os vídeos da Academia Khan permitem que o professor se concentre “na orientação, na relação com os alunos e na tutoria individual, que constituem os papéis mais nobres da profissão”. E acrescenta que a responsabilidade está, cada vez mais, do lado dos alunos, que têm de querer aprender: “O professor deve incentivar o aluno, mas este não pode ser passivo.”

Vítor Teodoro, que já recorreu aos vídeos da Academia Khan e a outros semelhantes nas suas aulas, ressalva que, se a utilização destes instrumentos não for feita de forma adequada, podem ser “mais do mesmo”, uma vez que foram “pensados para o modelo “missa””. “Quando projecto um vídeo, posso dizer: “Vejam e aprendam.” Ou posso parar a apresentação e dizer: “O que é que isto quer dizer?” “Vamos transferir este esquema para o papel”.” De acordo com João Barroso, transformações como a da “aula invertida” são “pequenas alterações cosméticas, que não tocam no essencial, que é a pedagogia”.

Três futuros possíveis

Para João Barroso, os problemas e os desafios que se colocam à escola fazem parte de uma evolução histórica e há três futuros possíveis para o processo de escolarização: a hiperescolarização, a desescolarização e a refundação, todos eles potenciados pela utilização das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC).

A tendência da hiperescolarização está relacionada com o reforço da escola homogénea. Neste caso, as novas tecnologias servem apenas, nas palavras de João Barroso, para fazer o upgrade daquilo que já está a ser realizado. “A sala de aula continua organizada da mesma maneira. O que eu vou melhorando são escolhas que já fazia. Isso não é mau. É o que os professores têm feito com o retroprojector, com o vídeo… Pequenas transformações nas práticas docentes que têm permitido que se passasse da disposição frontal para a disposição de grupo e que os alunos façam trabalhos de grupo.”

A defesa da desescolarização está associada à publicação, em 1971, dos livros The School is Dead, de Everett Reimer, e Deschooling Society, de Ivan Illich, onde se criticava a escola como instituição. Reimer considerava que a “salvação” da educação passava pelo fim da escola, tornando-se necessário devolver o acto de educar aos pais, à comunidade e à livre iniciativa. Illich, por sua vez, defendia que a educação universal por meio da escolaridade não era possível. Actualmente, este movimento da desescolarização foi recuperado pelos defensores do homeschooling (ensino doméstico), em que as famílias optam por educar os seus filhos em casa. Normalmente, o homeschooling está associado a perspectivas mais conservadoras, em que se defende o regresso à vida comunitária das famílias. Como explica João Barroso à Revista 2, “as empresas de software educativo têm vindo a apostar nesse público, fornecendo pacotes de programas educativos organizados em função dos vários anos de escolaridade para que os adultos em casa possam colocar os jovens em frente ao computador e aprender com esses programas”.

http://www.publico.pt/temas/jornal/quando-a-escola-deixar-de-ser-uma-fabrica-de-alunos-27008265 acesso em 08/09/2013.

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